Se depender do que veio à tona na Operação Última Ratio, a Justiça em Mato Grosso do Sul deixou há tempos de ser cega — ao menos quando o processo envolve heranças milionárias, decisões judiciais convenientes e parentes bem posicionados. No centro da nova vergonha nacional está o desembargador Sideni Soncini Pimentel e sua filha, Renata Gonçalves Pimentel, que embolsou nada menos que R$ 920 mil para “viabilizar” uma decisão que liberou a venda de uma fazenda de R$ 20 milhões. Detalhe: ela não era advogada de nenhuma das partes. Coincidência? É o que o bom senso já respondeu.
O alvará, negado duas vezes por um juiz de 1ª instância e rejeitado também por decisão colegiada do próprio TJMS, acabou liberado justamente quando voltou às mãos do desembargador Sideni. Um gesto de rara generosidade judicial, que ocorreu mais de um ano após o pagamento dos “honorários” à filha. Renata, embora oficialmente fora do processo, apareceu com a mão estendida e a conta bancária aberta para receber, via PIX, sua parte — repassada por ambas as pontas da negociação.
As conversas obtidas pela Polícia Federal revelam uma naturalidade estarrecedora na articulação entre advogados, compradores e a filha do magistrado. Um grupo no WhatsApp foi criado exclusivamente para tratar da venda da Fazenda Santo Antônio. Era tanta certeza de que a decisão sairia, que houve até piada: “10% de chance do alvará não sair pela cabeça do juiz”, disse um dos envolvidos. Renata riu. O Judiciário, aparentemente, virou uma roleta previsível para quem tem contatos certos e cifras generosas.
A operação mostrou que Renata ainda usou parte da bolada para quitar à vista uma caminhonete de luxo em nome do pai. Para disfarçar, tentou justificar o pagamento em espécie como “empréstimo de sócio”. Até a gerente do banco alertou que esse tipo de movimentação era comum entre membros do Tribunal. Aparentemente, o problema não é o crime — é ser pego transferindo o dinheiro.
O relatório da Polícia Federal não tem dúvidas: os R$ 920 mil recebidos por Renata foram pagamento antecipado por uma decisão que já tinha destino certo. E não foi qualquer decisão — foi a liberação de um bem milionário que, até então, a Justiça vinha corretamente barrando. Mas bastou o processo cair nas mãos do “relator prevento” para o milagre jurídico acontecer.
Como manda o manual da desfaçatez, a defesa do desembargador diz que “tudo foi legal, transparente e tecnicamente fundamentado”. Claro. O que não dizem é como se fundamenta uma decisão tomada após a filha do julgador embolsar quase um milhão de reais. Só esqueceram de combinar com a PF, que já havia rastreado toda a engenharia financeira — e moral — por trás da manobra.
A cronologia do escândalo é clara: pagamento em 2022, decisão em 2024. Mas para quem domina o tempo e o poder, isso é só detalhe. O que importa é que os negócios fluam, mesmo que para isso se precise transformar um tribunal em balcão de interesses privados. A venda da fazenda correu antes da decisão? Sem problema. A Justiça que corra atrás para legalizar depois.
Essa operação da PF é só mais uma peça do quebra-cabeça escancarado pela Última Ratio: um tribunal infestado por compadrios, tráfico de influência, decisões encomendadas e uma elite jurídica que se confunde com o poder econômico. E enquanto isso, milhares de cidadãos comuns seguem esperando anos por decisões que não compraram.
Em meio à ruína da confiança pública no Judiciário sul-mato-grossense, a pergunta que fica é: quantas fazendas, quantos alvarás, quantas caminhonetes e quantos milhões ainda precisam ser rastreados até que a Justiça deixe de ser assunto de piada e volte a ser assunto de respeito?