Ao adentrar a farmácia, é como se o consumidor embarcasse em uma pequena aventura. De um lado, o aroma dos remédios, do outro, a suave música de fundo. O consumidor então se dirige ao balcão, onde o atendente, com um sorriso simpático, o cumprimenta. “Olá! Posso lhe ajudar?” diz ele. Mas, antes que o consumidor possa terminar a frase do que precisa, a pergunta surge: “Por favor, poderia me fornecer seu CPF?”.
Esse momento, embora simples, evoca um misto de curiosidade e reflexão. Afinal, o CPF não é apenas um número; ele representa a identidade do consumidor no vasto universo consumerista. A decisão é rápida, quase automática. Entretanto, traz consigo um questionamento: até que ponto o acesso à informação pessoal é uma troca justa em relação aos benefícios oferecidos?
Acontece que o consumidor não tem outra alternativa a não ser revelar o dado que faz parte da sua história. Ou é isso, ou não ganha o desconto. Afinal, a farmácia, ao coletar dados, não apenas busca entender seu público e otimizar a experiência de compra, mas também atendê-lo com ofertas personalizadas.
A questão é: até que ponto a prática de forçar o consumidor a divulgar o CPF é permitida pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC)?
E a resposta: a solicitação do CPF para a concessão de descontos em farmácias pode ser vista como uma prática abusiva. Principalmente se o pedido do CPF não tiver sem clareza sobre a finalidade da coleta e sem o consentimento explícito do consumidor. Essa é a orientação do advogado Stefano Ribeiro Ferri. Ele é especialista em Direito do Consumidor, assessor da 6ª Turma do Tribunal de Ética da OAB/SP e membro da comissão de Direito Civil da OAB-Campinas.
No Estado de São Paulo, a Lei nº 17.301/2020 proíbe farmácias e drogarias de solicitar o CPF dos clientes. Inclusive, a prática é proibida para a concessão de descontos. Contudo, se a farmácia fornecer de forma clara e adequada a justificativa para a coleta de tais dados, aí sim ela pode coletá-lo. A legislação reforça os princípios já estabelecidos na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), afirma o advogado.
A coleta de dados pessoais para fins comerciais, como é o caso dos descontos oferecidos, deve ser feita com transparência e respeito aos direitos dos consumidores. Essa norma garante que os clientes tenham clareza sobre o uso de suas informações, evitando abusos e mantendo a confiança no setor de farmácias e drogarias. “A LGPD determina que o tratamento de dados pessoais deve acontecer com o consentimento do titular e para fins legítimos, específicos e informados. A coleta do CPF para oferecer descontos, sem transparência ou consentimento, pode infringir os princípios da LGPD e do Código de Defesa do Consumidor (CDC), caracterizando uma prática abusiva”, explica Stefano Ribeiro Ferri.
A preocupação aumenta quando se trata da coleta de dados sensíveis, como informações de saúde. Ferri esclarece que “dados vinculados à saúde são considerados sensíveis pela LGPD e, portanto, exigem cuidados adicionais no seu manuseio”. “O uso dessas informações para fins de marketing ou compartilhamento com terceiros, sem o consentimento explícito do titular, é vedado. As penalidades por um tratamento inadequado de dados sensíveis incluem advertências, multas de até 2% do faturamento da empresa (limitadas a R$ 50 milhões por infração), bloqueio ou eliminação dos dados e até a suspensão parcial ou total das atividades de tratamento de dados”, complementa o especialista.
Nesse ínterim, os consumidores têm o direito de ser informados sobre a finalidade específica da coleta de seus dados, a forma como esses dados serão utilizados e a segurança que será aplicada para protegê-los. Qualquer empresa que não seguir estas diretrizes pode ser responsabilizada legalmente, o que ressalta a importância de um compliance efetivo com a legislação vigente.
Ademais, as organizações devem garantir que os dados pessoais sejam acessíveis apenas a pessoas autorizadas e que haja protocolos claros para o tratamento de informações sensíveis. A implementação de treinamentos regulares para os funcionários em relação à proteção de dados é fundamental para minimizar riscos e garantir que todos estejam cientes de suas responsabilidades.
A transparência deve ser uma prioridade. Em síntese, as empresas precisam estabelecer políticas claras de privacidade e tornar essas informações facilmente acessíveis aos consumidores. Isso inclui a criação de canais de comunicação para que os usuários possam esclarecer dúvidas sobre como seus dados estão sendo geridos e possam exercer seus direitos, como o acesso, a correção e a exclusão de dados.
Outro ponto crucial é a adoção de medidas técnicas adequadas, como criptografia e monitoramento contínuo, para proteger os dados contra acessos não autorizados e vazamentos. É essencial que as empresas realizem avaliações de riscos regularmente para identificar vulnerabilidades e implementar as correções necessárias.
Com o aumento das denúncias, os órgãos de regulamentação têm intensificado sua fiscalização. Segundo o advogado, “instituições públicas, como a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e o Ministério Público Federal (MPF), estão adotando diversas medidas para inibir práticas abusivas na coleta de dados por farmácias”.
Recentemente, inclusive, o MPF abriu um inquérito civil para investigar a prática que exige o CPF em troca de descontos nas farmácias, além do uso inadequado dos dados dos consumidores para direcionamento de anúncios de terceiros.
A investigação do MPF busca esclarecer se a solicitação do CPF para concessão de descontos é abusiva. Essa prática possibilita que as farmácias criem bancos de dados com as preferências de consumo dos clientes, incluindo medicamentos. A RaiaDrogasil, a maior rede de farmácias do Brasil, informa que 97% de suas vendas incluem a obtenção do CPF dos clientes.
Dentre essas ações do MPF e da ANPD, estão a fiscalização direta, a aplicação de sanções administrativas e a abertura de inquéritos civis para investigar se a exigência do CPF, sem a devida autorização, constitui uma violação dos direitos dos consumidores.
Na visão de Ferri, essas iniciativas são essenciais para assegurar a proteção dos dados pessoais e sensíveis dos consumidores. “Essas ações garantem que as farmácias cumpram a LGPD e salvaguardam os direitos dos consumidores em relação à privacidade e ao tratamento dos seus dados pessoais”, conclui o especialista.