Justiça cega, surda e cúmplice

Em tempos de crise na saúde pública e hospitais à míngua, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul decidiu estender um tapete vermelho para a Prefeitura de Campo Grande e blindá-la de uma dívida milionária com a Santa Casa — justamente o hospital que carrega nas costas boa parte do atendimento SUS na Capital. Com uma canetada, o desembargador Sergio Martins cassou uma decisão que obrigava o município a ressarcir R$ 46,3 milhões desviados durante a pandemia. A justificativa? Uma tecnicalidade jurídica e um apego quase devocional ao “não transitou em julgado”.

Para quem não lembra — ou finge não lembrar —, em 2020, enquanto a Covid-19 matava milhares de brasileiros, a prefeitura, então sob o comando de Marquinhos Trad, com a ajuda do secretário de Saúde José Mauro Filho, achou por bem criar sua própria “interpretação” das leis federais. O resultado foi uma canetada mágica que transformou verbas destinadas à Santa Casa em recursos municipais. Um desvio legalizado por uma resolução que desrespeitou frontalmente duas leis federais e uma portaria do Ministério da Saúde.

Na prática, a prefeitura tungou R$ 13,5 milhões do hospital — valor que hoje, corrigido, chega aos R$ 46,3 milhões. A grana, que deveria garantir atendimento de qualidade em plena pandemia, foi simplesmente abduzida pelo cofre municipal. Se fosse uma empresa privada, estaria no banco dos réus por apropriação indébita. Mas como se trata do poder público, o Tribunal de Justiça preferiu passar pano.

O juiz de primeira instância, Marcelo Andrade, tentou corrigir a injustiça: deu 48 horas para a prefeitura devolver o dinheiro, sob pena de sequestro da quantia diretamente da conta bancária. Mas bastou o município recorrer para o TJMS jogar a decisão no lixo. O argumento do desembargador? O processo ainda não terminou. Como se os pacientes da Santa casa tivessem tempo de esperar o trânsito em julgado da burocracia judicial.

Para piorar, o próprio magistrado reconheceu que a situação da Santa Casa é grave, com prejuízos evidentes à população. Mas, paradoxalmente, usou essa mesma gravidade como desculpa para proteger a prefeitura. Disse que a decisão “não serve de salvo-conduto ao Município”, mas na prática é exatamente isso que ela representa: uma permissão para continuar descumprindo decisões e postergando responsabilidades.

A cereja no bolo da ironia veio com o anúncio de um “acordo emergencial”. Após intervenção do Ministério Público, prefeitura e governo do Estado prometeram repassar R$ 31 milhões até junho. Parece muito? Pois não cobre nem os próximos três meses do déficit da Santa Casa, que gira em torno de R$ 13 milhões mensais. Ou seja, é um paliativo para fingir que o problema está sendo resolvido — enquanto o rombo maior segue ignorado.

A participação da prefeitura, aliás, é risível: R$ 3 milhões em dois meses. Isso mesmo, R$ 1,5 milhão por mês, enquanto a dívida real ultrapassa R$ 46 milhões. É como jogar um copo d’água num incêndio e sair dizendo que ajudou a apagar. E o Judiciário, que deveria ser o bombeiro, preferiu soprar a brasa.

Não há como suavizar: o Tribunal de Justiça falhou com a Santa Casa, com os pacientes e com a sociedade. A decisão de Sergio Martins pode até estar juridicamente embasada, mas moralmente é indefensável. Quando o poder Judiciário se curva ao poder político, o Estado de Direito vira um espetáculo de ficção.

No fim das contas, quem paga a conta é o povo. O mesmo povo que lota os corredores da Santa Casa, espera horas por atendimento e agora vê a Justiça passar pano para quem deveria estar pagando a conta. Justiça cega? Talvez. Mas, nesse caso, parece mais surda e cúmplice.

Compartilhe
Notícias Relacionadas
© 2024 O Consumidor News
Desenvolvido por André Garcia - www.conffi.com.br